sexta-feira, 2 de abril de 2010

Perdemos o Marivaldo!

Na última quarta-feira, dia 31, na parte da tarde, ainda estava meio sonolento devido à noite mal dormida, consequência de ter acompanhado na noite anterior a mais uma reunião do Conselho Deliberativo do Fluminense até o seu final, por volta das duas horas da madrugada. E quando me preparava para iniciar mais uma aula, um aluno me perguntou:

- Professor o senhor deu aulas para o Marivaldo?
- Sim. Por quê?
- É que ele morreu!
- Como?
- Foi assassinado.
- Onde?
- No morro.
- No Borel?
- É.

Marivaldo era um mulato, pobre, criado no Morro do Borel que foi meu aluno em 2008, numa escola da Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca. Marivaldo era um adolescente rebelde, arredio, em alguns momentos até abusado e grosseiro. O que considerei plenamente compreensível, após tomar conhecimento de que seu pai tivera problemas com a polícia e ficou preso por uns tempos.

Muitos professores detestavam o Marivaldo e achavam-no um dos piores alunos de nossa escola e queriam ‘se livrar’ dele. Alguns sugeriam que a diretora da escola transferisse o Marivaldo para outra escola. Eu levantava a seguinte reflexão: “Numa outra escola, não existem também outros professores? Será que numa nova escola, os novos professores também tentariam transferir o Marivaldo, para outra escola"? Sempre questionei esta prática. Tentava mostrar aos professores, que transferindo o aluno transferíamos um aluno problema ou criávamos um problema para o aluno? Desta maneira, poderíamos contribuir para reduzir a auto-estima do aluno. Sei que a tarefa é árdua, mas educadores devem sempre tentar todas as possibilidades e essencialmente abusar da criatividade.

Entretanto, descobri algo que foi de fundamental importância na transformação do comportamento de Marivaldo. E para melhor. Como eu, Marivaldo era ‘torcedor fanático do Fluminense’. Bom, aí já viu né? Lentamente, ‘fui domando a fera’. Nossa relação mudou da água para o vinho. Percebia que nas minhas aulas, Marivaldo mudava completamente o seu comportamento tornando-se mais atentencioso e gentil. Porém, explicava-lhe de que não adiantaria apenas melhorar seu comportamento nas minhas aulas. E sim, em todas.


Sempre contei inúmeras histórias sobre o Fluminense para os meus alunos, que apesar de muitos serem torcedores do Flamengo, todos sempre gostavam muito. Como um 'bom educador' sempre tenho esperanças de orientá-los num bom caminho. E entre eles, o tricolor Marivaldo. Contava principalmente, histórias sobre o histórico Estádio das Laranjeiras, o primeiro jogo da Seleção Brasileira em 1914, o campeonato Sul-Americano de 1919, a doação do avião pelos sócios do Fluminense para a FAB, num dia de Fla x Flu, durante a segunda guerra mundial, em 1942. Percebia como todos ficavam encantados com elas. Os mais ligados em futebol e os tricolores adoravam ouvir tais histórias. E até as meninas não ficavam indiferentes e se entusiasmavam bastante.


Marivaldo era torcedor do Fluminense por influência de seu pai, também tricolor. O sonho de Marivaldo era ser jogador de futebol. Depois que seu pai ficou livre da prisão, seu comportamento melhorou cada vez mais. Certa vez, Marivaldo me contou: “Professor, meu pai vai me levar pra treinar em Xerém”. Marivaldo tinha verdadeira adoração por Xerém, me contava histórias de alguns colegas que já tinham feito alguma experiência em nosso Centro de Treinamento. Recomendei a ele, que seguisse as recomendações dos professores e técnicos. Dizia a ele que no futebol era preciso muita determinação e empenho. E desejei-lhe sorte e sucesso.


Uma vez alertei ao Marivaldo, que dentro do seu nome, encontrávamos o nome do “maior artilheiro da história” do Fluminense, o centroavante Valdo, que marcou 314 gols. Numa outra ocasião contei a história de Carlos Alberto Gomes, o “Pintinho”. O “Holandês do Borel” é como um jornalista apelidou-o e Pintinho orgulhava-se de ser chamado desta forma. O apelido fazia alusão ao futebol técnico e moderno exibido pela seleção holandesa de 1974 e ‘as raízes’ de Pintinho. Dizia ao Marivaldo que, como ele, Pintinho era cria do Morro do Borel. E o Pintinho que tinha um futebol extremamente belo e refinado tornou-se um dos grandes ídolos da minha infância. Pintinho era um dos integrantes da “Máquina do Dr° Horta”. Procurava incentivar o Marivaldo, dizendo a ele: “Quem sabe um dia você não se tornará um novo Pintinho do nosso Fluminense”?


Naquele ano de 2008, na memorável campanha tricolor na Taça Libertadores da América, acompanhei o Fluminense de forma intensa e obcecada. Não perdia um jogo sequer. O título seria a consagração de toda uma vida. E não existiria trabalho ou coisa parecida que me impedisse de acompanhar o Fluminense. Como dizia a velha frase: “Pra tudo se dá um jeito”. O Fluminense mais do que nunca estava acima de tudo! São Paulo, Buenos Aires, Quito, nada me separaria do Fluminense. Nada me afastaria da incrível possibilidade de estar construindo uma das páginas mais lindas e gloriosas da história do Fluminense. Nada!


Durante as viagens, ocasionalmente colaborava com alguns repórteres de TV. Pra quê? Meus alunos, incluindo o Marivaldo, julgavam-me a partir de então ‘famoso’ e ‘importante’. Tentava mostrar para eles, que mais importante do que aparecer na tela de um aparelho era a energia, a paíxão, o amor, a história, que nos levava a viajar durante horas e horas para vermos 90 minutos de um jogo de futebol que poderia ser assistido confortavelmente deitado no sofá de casa.


Toda esta minha ‘impetuosidade tricolor’ seduzia admiravelmente meus alunos, incluindo principalmente o tricolor Marivaldo. Contudo, explicava-lhes que, o que fazia as pessoas tomarem tal atitude que, para muitos poderia ser pura loucura, era algo que conhecemos como ‘alma’.


Em 2009, Marivaldo foi transferido de escola, para outra no mesmo bairro da Tijuca. E ficamos sem contato. Mas, numa daquelas memoráveis vitórias da ‘arrancada tricolor’ contra o rebaixamento no campeonato brasileiro, encontrei o Marivaldo no Maracanã e nos abraçamos muito, por nosso reencontro e pela vitória do Fluminense. Descemos juntos a rampa de saída pela Uerj. Saímos juntos, pulando, cantando, gritando como loucos, comemorando a vitória do nosso Fluminense. Tínhamos a certeza que o Fluminense se salvaria do rebaixamento, fato que acabou se concretizando.


No último sábado, dia 27 de março, Marivaldo completou 16 anos. Na segunda-feira, dia 29, na parte da tarde, Marivaldo foi fazer o que mais gostava: jogar futebol. Marivaldo foi jogar futebol com vários amigos de sua idade, num campinho de peladas que fica no Morro do Borel. Nestes campinhos de pelada é comum que várias pessoas se aproximem para ver os jogos. E uma das pessoas que se aproximou, para ver o jogo que Marivaldo disputava era um jovem armado ligado ao tráfico de drogas. É muito importante destacar que, Marivaldo jamais teve envolvimento com o tráfico de drogas.


E nesta mesma segunda-feira, dia 29, a polícia foi dar uma batida no Morro do Borel. Na tentativa de capturar o jovem traficante que assistia ao jogo de Marivaldo, os policiais do 6° Batalhão da Polícia Militar chegaram “barbarizando” e “tocando o terror” no campinho de pelada. Os policiais mais pareciam capitães-do-mato perseguindo escravos. Sem nenhuma discussão, um dos policiais disparou um ‘balaço na cara’ de Marivaldo deixando-o agonizando no chão. Outros dois companheiros de futebol de Marivaldo levaram tiros pelas costas do mesmo policial e morreram. Deitado no chão em estado gravíssimo, Marivaldo ainda foi vítima de um chute fortíssimo no rosto marcando-o na face, já destroçada pelo tiro. Não demorou muito tempo e Marivaldo veio a falecer ali mesmo no campinho de peladas do Borel. É muito comum nestes casos, os policiais militares dizerem à sociedade que os mortos eram traficantes, mas este não era o caso de Marivaldo, que apenas queria e sonhava em tornar-se um jogador de futebol.


Os tijucanos possuem um orgulho enorme das tradições e da história de seu bairro. E torcem para se livrar dos traficantes armados e das ações violentas da polícia. A Secretaria de Segurança Pública garantiu que as favelas da Tijuca estão na rota do projeto da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). A esperança dos moradores do bairro da Tijuca é que as unidades pacificadoras nos morros ajudem a reduzir os casos de violência.


A garantia de que serão implantadas UPPs na Tijuca vem de eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, que vão necessitar do estádio do Maracanã. É necessário refletir sobre as UPPs. O estado não pode estar presente nas comunidades apenas por meio da polícia. Não será possível pacificação com uso de violência. E há estudos que mostram que ações policiais em favelas no sentido de garantir a paz vêm acompanhadas da “execução sumária” de pessoas. É lógico que a situação da violência é calamitosa, e algo precisa ser feito.


Os conservadores dizem que vivemos uma verdadeira ‘guerra civil’. Creio na definição do excelente documentarista João Moreira Salles, vivemos numa “guerra particular” (entre bandidos e policiais). Educação, saúde, arte, cultura, esporte e saneamento básico são fundamentais para todos e diminuem a violência de um local. Continuo defendendo o velho pensamento de Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.


A Copa do Mundo e as Olimpíadas serão importantíssimas para a realização de vários negócios e empreendimentos em nossa maravilhosa cidade. E isto é muito bom para nossa cidade. Mas não é tudo! Entretanto, estes eventos serão de fundamental importância para melhorar a realidade da população pobre. Esta será uma oportunidade imperdível para o Rio de Janeiro. Se não conseguirmos construir uma sociedade com mais oportunidades e melhor qualidade de vida para a enorme parcela da população pobre do Rio de Janeiro, teremos fracassado e estes grandes eventos esportivos poderão não ter servido para nada.


E o futuro presidente do Fluminense precisará ter uma visão bem ampla da situação de nossa cidade, suas perspectivas e potencialidades. Podemos descrever uma analogia entre o Fluminense e o Rio de Janeiro. O Fluminense pode e deve se inserir neste intenso processo de recuperação social do povo carioca. O “CIDADÃO FLUMINENSE” sempre estará neste campo de luta social colaborando com o Rio de Janeiro, para que outros Marivaldos não sejam vítimas da intolerância.






NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR


http://www.youtube.com/watch?v=zp7KVlft-54





2 comentários:

  1. Espero que no futuro outros Marivaldos possam usufruir do Nobre Clube FFC para a prática de esportes como capoeira, natação, tiro, botão de mesa, basquete, volei, salto ornamental, xadrez e tantos outros esportes que o nosso clube poderia oferecer a moçada com a história do Marivaldo.
    Saudações de Luta

    Fabio Dib

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  2. Prezado Fabio Dib,

    É um grande prazer tê-lo aqui debatendo conosco neste espaço livre democrático. Será sempre uma honra contar com sua presença nos debates do "CIDADÃO FLUMINENSE".

    Concordo com você. E não só espero, como trabalharemos para que no futuro outros Marivaldos possam usufruir do Nobre Clube FFC para a prática de esportes. O Fluminense possui em sua história uma fortíssima inclinação ideológica para a prática desportiva seguindo o espírito olímpico. Nós tricolores, temos muito o que fazer pelo povo do Rio de Janeiro.

    Saudações de Luta

    EDUARDO COELHO

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